terça-feira, 9 de outubro de 2007

Cordel "O Cantador Estradeiro e a Outra Bahia do Mundo - Município de Tudo - de Flávio Gonzalez



Este foi o cordel que nós do grupo adaptamos para montar nosso Espetáculo "O Andarilho in-canta-dor". Não pegamos todo o cordel. Usamos um narrador que diz o cordel (adaptado), contando a história do personagem Andarilho e suas aventuras e descobertas, enquanto acontecem as cenas com música e encenação. Tenham uma ótima leitura.



"O Cantador Estradeiro e a Outra Bahia do Mundo - Município de Tudo -"




Saudara tanta cancela
Naquele mesmo caminho
Que, de cor, já conhecia
Cada rosa, cada espinho
Mas, queria ir adiante
Acompanhado ou sozinho

Ouvira falar de um lugar
O mais bonito existente
A Velha Bahia de Antanho
Cidade iridescente
Berço do Amor e da Vida
Do que não se vê, mas se sente

Na lumeeira do dia
Se fez de todo partida
Beija a mão de seu avô
Na qual se lê “despedida”
Da sina abre a cancela
De andar andança atrevida

E para ganhar sustento
Passa a cantar nas estradas
Seu nome corre no tempo
Qual folhas no vento lançadas
Se faz Cantador Estradeiro
Das noites enluaradas

Passando por certo rancho
Vê rasgando o firmamento
Estrela toda cadente
Vertente de chamamento
E pega sua rabeira
Aproveitando o momento


Pelo destino que segue
Essa estrela tão brilhosa
Logo percebe seu rumo
Rastreada luminosa
Sentido Bahia de Antanho
A velha cidade formosa

E com que alegria se presta
A cruzar o Sertão com ela
Estrela mais derradeira
Posto que estrela mais bela
Tem medo, sim, mas prossegue
Vencendo geada e procela

Mas, a estrela não para
Como não para a jornada
Até que se cumpra a sina
Que foi, pela Vida, traçada
E num descuidado instante
Se vê lançado no nada

Quem de nós não se viu, um dia
Perdido, sem ter lugar
Abandonado de tudo
Que é feito de se guardar
No mais dramático ofício
Chamado “Renunciar” ?

Caía agora no mar
Sobre o qual a estrela passava
Chorando onda por onda
E nada mais lhe restava
Senão as rezas que outrora
Soubera e ora lembrava

Recordava o seu avô
E sua infância risonha
Guardando um fio de esperança
Que é dado àquele que sonha
Lamentava ter pouco amado
Por vaidade ou vergonha

No meio da rezadeira,
E já lhe faltavam ares,
Eis que lhe surge, luzente
Iemanjá, mãe dos mares
- Eu vou te salvar, Cantador
- Tu vais aonde te encontrares

E surge baleia gigante
De porte descomunal
Abocanhando o Estradeiro
Mas, sem lhe causar nenhum mal
Pondo-se em longa viagem
Em busca de um litoral

Deixado na praia, intacto
O Cantador rejubila
Ao ver-se em terra diversa
Divisa formosa vila
Conclui: é a Bahia de Antanho
De prata – como cintila !

E vive feliz sua vida
Embora, no sempre, saudosa
Na recordança doída
De uma estrela luminosa
Mas, firme, prossegue, indo
No seu mundo em verso-prosa

Recebe de uma senhora
Uma tal Mãe-de-Santo-da-Graça
Um patuá encantado
Pra que o reencanto se faça
E, se doer, passe logo
E, se morrer, se renasça

Por longos anos encontra
Alegria em sua vida
A Bahia de Antanho era mesmo
Uma Terra Prometida
E vive tudo, de pleno
Vivência mais merecida

Uma noite, porém, que espanto !
Se perde num cemitério
E vê a lápide do avô
O velho Silveira Silvério
E o que percebe, chocado
Parece-lhe um despropério

A baleia que o deixara
Não o levara à Bahia
Trouxera-o para casa
Coisa que ele não via
Ou porque não pudesse
Ou porque não queria

Chorando tão tristemente
Se vê inteiro magoado
Vivera, então, tão feliz
Mas, sempre ilusionado
É como se fora vendido
É como se fora roubado

A Mãe-de-Santo lhe surge
E, misteriosa, sorri
- Não há aonde ir, meu filho
A dádiva é estar aqui
Tudo é chegança na vida
Pra quem dá um tudo de si

Pensativo um minuto
Reflete o nosso Estradeiro
De fato, fora feliz
Num lugar bem verdadeiro
A sua Bahia era o mundo
E tudo era seu paradeiro

É como dizia o Rosa,
Dos homens mais sábios sendo,
“ Quando não acontece nada,
Há sempre um milagre ocorrendo
Mas, a gente de distraído
Acaba que nunca vendo “

Feliz aquele que sabe
Viver o seu cada-dia
Não importa partida ou chegada
Mais vale é a travessia
Não há paradeiro distante
No andar sempre há poesia

O Cantador Estradeiro
De atordoada emoção
Derruba o seu patuá
E, ao vê-lo cair no chão,
Vê que, sem ver, tinha a estrela
Atada àquele cordão

À imensa minoria
Daqueles tão desiguais
Que ainda lêem poesia
E, por isso, são marginais
Dedico estes pobres versos
Dizendo as palavras finais:

O Amor Verdadeiro fica
Querendo ou não a vontade
Parece que foi-se embora
Mas, mora na eternidade
Dessa nossa in-coisa humana
A qual chamamos ... saudade.

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